O Novo Testamento um livro Cristão, ou um livro judaico?



Uma concepção errônea tanto no mundo judaico como no cristão nos diz que o Novo Testamento (B'rit HaDashá) pertence à Igreja e não ao povo judeu, que Jesus (e não Yeshua) fundou uma nova religião, tornando obsoleto o Judaísmo como a religião da Verdade e do único e verdadeiro D’us do povo judeu, o povo escolhido. Qualquer concepção que pregue um novo Israel ou sobre um Israel espiritual reflete essa idéia que é corrente e prevalecente no mundo cristão, que a Igreja tomou o lugar de Israel e dos judeus, e que, por conseguinte, se os judeus quiserem ser salvos, precisam se tornar cristãos, o que implica em deixar o judaísmo para trás. 

Quando examinamos a Bíblia e documentos pós bíblicos do Judaísmo, vemos que o Novo Testamento, seus ensinamentos, suas personagens e sua mensagem estão profundamente enraizados no mundo do primeiro século, na Terra de Israel e na herança judaica; tanto na herança bíblica do Antigo Testamento, como, naturalmente, na herança rabínica contemporânea de Yeshua HaMashiach. Tendo isso em vistas, essa série de palestras pretende apresentar o conhecimento e a experiência que o judaísmo rabínico possui em relação ao tema do Messias, e, mais especificamente, tratar da questão de como as passagens literais do Talmud e da Mishná afetam nosso entendimento sobre o mundo de Cristo e do próprio Novo Testamento.

Existem algumas definições que precisamos especificar e clarificar antes de iniciarmos, de fato, nosso assunto. A primeira delas diz respeito ao que é o Novo Testamento: é um documento da igreja ou é um documento histórico do povo judeu? Mas antes de responder a essa pergunta, vamos analisar o termo “Novo Testamento”. Está fixada no Cristianismo a percepção de que há um Novo e um Antigo Testamento.

O termo Novo Testamento, obviamente, não é advindo do livro que nós hoje assim chamamos. O termo aparece pela primeira vez na boca do profeta Jeremias. No capítulo 31, verso 31 do Livro de Jeremias, o profeta diz, em nome do Senhor, que D’us fará um novo testamento, um novo pacto, um novo contrato com o povo da Judéia e com o povo de Israel. O termo nesse contexto não implica nem se refere a um livro. Refere-se a uma aliança, como a aliança feita com Israel no Sinai, ou como a aliança feita com Abraão no Monte Moriá.

Chamar esses livros “Antigo Testamento” e “Novo Testamento” implicam numa designação incorreta. Esses livros são, na verdade, coleções que contêm o material escrito durante um período de milhares de anos por, diriam alguns, mais de quarenta autores diferentes, e esse material compilado forma a Bíblia. Considerando apenas o vasto período de tempo e os variados ambientes culturais nos quais a Bíblia foi escrita, temos uma gama de conformações históricas que vai da peregrinação no deserto com Moisés ao governo do Reino de Israel pela Casa de David; do reino dividido em seguida, sob forte influência e assédio da Assíria e, mais tarde, da Babilônia, ao retorno do exílio sob a liderança de Esdras e Neemias. 

As centenas de anos pelos quais se estendem esses períodos e as diferentes linguagens deixaram suas marcas sobre o povo de Israel, e toda essa influência se faz sentir fortemente nos textos bíblicos. Da mesma maneira, o Novo Testamento foi escrito durante um período que cobre uma centena de anos, de Jesus ao final do primeiro século. Também possui muitos escritores, alguns israelitas, outros imigrantes em Israel, visitantes, ou estudantes estrangeiros, como o apóstolo Paulo, que era da cidade de Tarshish, e foi para Jerusalém estudar na escola de Gamaliel. Entre eles há, inclusive, um gentio prosélito, Lucas, um médico grego. Em outras palavras, temos aqui uma coleção de livros inspirados pelo Espírito Santo, escritos ao longo de milhares de anos, e seria uma grande simplificação referir-se a essa compilação como Antigo e Novo Testamento. Sim!

O livro que chamamos em português de Antigo Testamento é o mesmo TaNa'CH hebraico, formado pela Torah, Neviim e Ketuvim, suas três grandes divisões que conhecemos, respectivamente, pelos nomes Pentateuco, Profetas e Escritos. Nele há vários estilos literários diferentes, não se tratando somente de um contrato legal ou de um testamento. Encontramos nele poesia, como o livro de Cânticos, que reúne belos poemas de amor, ou o Canto de Débora, memorial de guerra pela vitória de Débora e Baraque contra os Caananitas. Também há os Salmos de David, que são hinos profundamente devocionais e emocionantes em louvor a D'us ou em petição por Seu socorro. Inclui documentos históricos como porções dos livros de Samuel, 1º e 2º Reis e 1º e 2º Crônicas, e, igualmente, profecias, como os registros dos profetas clássicos Isaías, Jeremias, Ezequiel, Miquéias, Amós e Habacuque. Este livro é uma abrangente obra literária que possui desde documentação legal até narrativas contadas ao redor de fogueiras, de poesia a documentos históricos.

Ninguém pode simplesmente amontoar a coisa toda e então dizer: bem, isso é a Lei tão somente. No Novo Testamento também encontramos uma grande variedade de estilos literários, inclusive material jurídico, visto que há leis no Novo Testamento. Paulo muitas vezes fez (e também os apóstolos em Atos 15), sem dúvida, exigências legais; leis que estão permanentemente sobre a Igreja, sobre todos os seguidores de Yeshua HaMashiach, sejam eles judeus ou gentios, havendo exigências específicas para cada um estabelecidas pelos apóstolos, pelo poder do Espírito Santo. Então, ninguém pode dizer, como o Cristianismo tradicional tem dito, que o Velho Testamento é Lei, e o Novo Testamento é Graça. Não! Há graça na Lei, e há lei na Graça que recebemos de Jesus Cristo. Amontoar essas coisas e dizer “Velho Testamento” e “Novo Testamento” é um erro, uma grave incompreensão. A terminologia bíblica não é essa. Aqueles termos originam-se na tradição cristã e foram atribuída aos livros que chamamos de Bíblia.

Sendo assim, quando nos referirmos ao Novo Testamento, a pergunta que precisa ser feita é: este é um livro do Cristianismo, ou é um livro judaico? Quando alguém examina o Cristianismo, mesmo no segundo século ou no século XX, imediatamente percebe que os problemas com os quais o Novo Testamento trata são problemas não-cristãos; não trata de problemas eclesiásticos, não trata de problemas como a Imaculada Conceição (nascimento virginal), ou do Papa, ou de arcebispos,cardeais, nenhuma dessas coisas que são todas próprias do Cristianismo. Nem os dias santos, nem a política, nem a doutrina básica cristã é assunto discutido no Novo Testamento. Todas as questões mencionadas nele estão circunscritas ao mundo judaico do primeiro século. 

Por exemplo, um dos principais problemas que Paulo examina numa série de cartas, foi o que fazer com os gentios: se deveriam manter a lei de Moisés ou não, se deveriam ser circuncidados ou não. Esse não é um problema da Igreja gentílica, mas judeus fazem essas perguntas e judeus deram respostas para essas questões por inspiração de D’us e do Espírito Santo. A estrutura que sustenta o Novo Testamento é a estrutura do Judaísmo, a igreja primitiva era uma igreja judia. De fato, D’us precisou convencer a Pedro, por meio de uma visão sobrenatural, que ele teria que pregar aos gentios, naquela ocasião, Cornélio e sua família em Cesaréia. D’us não havia tornado claro para os apóstolos, antes daquela visão, que os gentios também deveriam ser alcançados pelo Evangelho. Isso teve que esperar, e foi revelado apenas ao final do ministério de Yeshua, depois de sua ressurreição e antes de sua ascensão, quando enviou os apóstolos a todas as nações. Em outras palavras, por três anos o Messias ensinou aos apóstolos, ao povo de Israel, debateu com os fariseus e com os saduceus, e, durante esses três anos, não temos registro que tenha dito: 

“Escutem, o profeta de Israel, Isaías, disse: minha casa será chamada casa de oração para todas as nações” Ao invés disso, temos um relato muito diferente sobre uma mulher siro-fenícia que veio até Yeshua para ser curada Ele disse a ela: “ninguém dá a comida dos filhos para os cãezinhos”. Somente após ela ter insistido e comovido Yeshua com sua humildade e avidez por ser curada pelo nome do D’us de Israel, ele curou sua filha. Não há indícios que em seu ministério os gentios teriam direito a alguma parte no domínio da salvação. E o domínio da salvação para Yeshua e seus apóstolos está no mundo judaico, no mundo da Torá, no universo da Terra de Israel no primeiro século, do qual Yeshua nunca se separou nem se ausentou. Ele nunca foi à escola em Roma, muito menos se graduou em Harvard. Retomemos nossa questão: 

O Novo Testamento é um livro judeu, sim ou não? 

Se for um livro judeu, então para entendê-lo, nós precisamos recolocá-lo em seu lugar de origem, de volta ao seu ambiente histórico, lingüístico, cultural e religioso originais. 

Creio que essa é a única forma pela qual podemos entender o Novo Testamento e seu real significado para nós hoje. ... Mesmo se o tornarmos de volta ao contexto do primeiro século, nesse contexto, que é judaico, alguém poderia objetar que aí também encontraríamos relações e a presença de elementos do judaísmo helenístico; mas, ainda assim, não é o Helenismo propriamente dito, mas o judaísmo helenístico, que era um dos constrangimentos culturais nos quais a Terra de Israel estava mergulhada naquele momento. Ainda assim, continua sendo um livro judeu, com uma mensagem judaica

Ele começa com as seguintes palavras: “Esse é o livro das gerações de Yeshua, o Messias, o filho de David, o filho de Abraão”. Esse versículo por si só enquadra todo o contexto do Evangelho dentro do Judaísmo. Em primeiro lugar, o escritor diz que este é o livro das gerações. Se alguém checar a terminologia, notará algo muito interessante nessa passagem. Existe somente um outro lugar na Bíblia em que essa frase é usada, em Gênesis capítulo 5, versículo 1: “Esse é o livro das gerações de Adão”. O escritor de Mateus, por inspiração, principiou o Evangelho com essas palavras a fim de relembrar ao leitor que D’us criou o homem. Ele o criou do pó da terra, soprou dentro dele o fôlego da vida, e D’us, que criou o homem, não enfrenta problema algum para fecundar uma mulher de maneira sobrenatural, fazendo vir Seu Filho para o mundo em carne; e, segundo, assevera que Ele cumpriu sua promessa de que o Messias procederia do Rei David e de Abraão.

Nota do Tradutor: Na verdade, na descrição da expulsão dos vendilhões do Templo, tanto Mateus (21:13) quanto Lucas (19:46) reproduzem a fala de Yeshua citando, de fato, o profeta Isaías (Is 57: 6), omitindo, porém, a parte final do versículo (...para todas as nações), que apenas aparece em Marcos (11: 17). João (2: 16) não inclui os versos de Isaías seu relato. Em todo caso, é preciso esclarecer que aqui o Rabino Shulam refere-se à omissão, no mínimo, da extensão das Boas Novas aos gentios durante o ministério de Yeshua. Mesmo na forma encontrada em Marcos, (11: 17). João (2: 16) não inclui os versos de Isaías em seu relato. 

Em todo caso, é preciso esclarecer que aqui o Rabino Shulam refere-se à omissão, no mínimo, da extensão das Boas Novas aos gentios durante o ministério de Yeshua. Mesmo na forma encontrada em Marcos, a citação de Isaías não pode ser tomada como evidência explícita da inclusão dos gentios no ministério de Yeshua, pelo menos não antes da ordenação da missão universal aos discípulos (Mt 28: 19; Mc 16: 15 e 16; Lc 24:47) pouco antes da Ascensão. Ao contrário, segundo vemos nas instruções aos doze em Mateus (Mt 10: 5 e 6), o Mestre instrui seus discípulos a se “desviar dos gentios e samaritanos” e dirigir-se às “ovelhas perdidas da Casa de Israel”. Somado a isso, a citação não se encontra num contexto de debate sobre o papel e participação dos gentios, mas é uma exortação cheia de zelo contra os vendilhões e todos os que desfiguravam o ambiente e propósito do Templo. 2 Mc 7:26

O Rei David e Abraão, por sua vez, são as duas figuras na História Israelita que receberam uma promessa da parte de D’us, uma promessa incondicional que inclui a salvação do povo de Israel e benção para todas as nações, e são, portanto, mencionadas no primeiro versículo do Evangelho de Mateus para relembrar o leitor que aquilo que irá ler, a história do Messias, de Yeshua, de Jesus, é um capítulo dentro da História de Israel. Não é a história de Roma, não é a história do Protestantismo, não é a história de Calvino ou Lutero, é a história do povo judeu, e Jesus é aquele mesmo Messias esperado por nossos antepassados. E essa espera, essa expectativa pela vinda do Messias, é, foi e sempre será a esperança de Israel. Essa não é a esperança do mundo, porque o mundo naquele tempo e ainda hoje, em sua maior parte, é idólatra; adoram a uma multiplicidade de deuses, não ao Uno e Único D’us, de quem nós dizemos:

“ShmáYisrael, AdonayEloheynu, AdonayEchad” – “Ouve, Ó Israel, o Senhor seu D’us é Um”. 

Nota do Tradutor: Segundo Oskar SKARSAUNE “o judaísmo absorveu idéias helenísticas sem perder sua identidade e sem comprometer seus princípios essenciais. Essas novas idéias helenísticas foram usadas, nas palavras de  Avot 1.1, 'para erigir uma proteção em torno da Torá', para glorificá-la, e não para destruí-la. (...) Assim, uma vez reconhecidas a exclusividade do Israel de D'us e a validade absoluta de sua Lei, os sábios podiam usar de larga liberalidade na aplicação das idéias e dos conceitos gregos em suas reflexões sobre a Torá” (À sombra do Templo. São Paulo: Editora Vida, 2004). Ou seja, uma vez resguardada a prescedência da Torá como verdade revelada, qualquer idéia ou conceito que “sobrevivesse” ao seu rigoroso crivo poderia ser, e acabou por ser, absorvido e integrado ao pensamento judaico. O caso mais famoso e significante, presente, inclusive, no Novo Testamento, é a identificação do logos, a lei oculta que rege todo o universo ou razão divina, com a Torá, o padrão eterno mediante o qual tudo foi criado. Portanto, mesmo o judaismo helenístico está longe de ser uma espécie de judaísmo “paganizado”, antes, é mais uma expressão daautonomia e consistência do pensamento judaico frente às mais elevadas formas de pensamento pagão.

É importante, então – e mais importante para nós se realmente quisermos saber a verdade e entender qual é a vontade de D’us –, entendermos que aquilo com que estamos tratando aqui é um livro judaico. Estamos tratando com um livro que é judeu em sua profundidade, em sua linguagem, em sua teologia e em seu universo conceitual. Para entende-lo, temos que voltar ao primeiro século, e tentar compreender o que os ensinamentos, as parábolas, as declarações de Yeshua, o que as histórias e os conflitos com os fariseus e com os saduceus realmente significam naquele contexto. Somente então podemos estar seguros que realmente temos uma concepção bíblica de fé, graça, esperança, vida eterna e salvação.

Vejamos, então, quais ferramentas temos que nos ajudam a compreender o universo de Yeshua HaMashiach, o mundo judaico do primeiro século. Quais ferramentas temos à nossa disposição e que nos possibilitam fazer tal coisa? Primeiro e antes de tudo, temos o Antigo Testamento do qual já falamos, o livro santo que Yeshua usou que leu na sinagoga em Nazaré, o mesmo livro que citou várias vezes diante de seus oponentes, o livro sobre o qual o apóstolo Paulo disse: “Toda escritura é inspirada por D’us, e é proveitosa para exortar e corrigir, ensinar e instruir” (1Tm 3:16). É esse livro que Paulo usava para provar, nas sinagogas em Tessalônica, Beréia e Corinto, que o Messias havia vindo. 

Quando Paulo ensinava, fazia citações do Antigo Testamento, da Torá, que diziam que ele (o Messias) devia sofrer ser enterrado, devia ressuscitar dos mortos e assentar-se à direta de D’us. Ele não tinha Mateus, Marcos, Lucas e João à sua disposição, não tinha nem mesmo a epístola aos Gálatas, uma vez que ele não a havia escrito ainda. Tampouco possuía o livro de Romanos quando estava andando por Listra e Pérgamo, Icônio, Éfeso e Colossos, ensinando a judeus e gentios que Yeshua é o Messias. O que possuía eram os livros de Moisés, e, talvez, alguns dos livros dos profetas à sua disposição isso era tudo o que tinha. Então, a primeira fonte para compreender o Novo Testamento, naturalmente, é o chamado Velho Testamento, mas existem outras fontes. No próprio Novo Testamento, nós temos citações de muitos dos mais populares livros no tempo de Yeshua HaMashiach. 

Temos citações de Enoch, do livro de Eclesiástico, ou ben Sira em hebraico. Nós temos citações de material rabínico, e temos uma série de fontes que são citadas e claramente procedem do ambiente judaico daquele período, e foram usadas para apresentar Yeshua como Messias. Além dessas fontes do período Inter testamental, que estão parcialmente citadas no Novo Testamento pelos próprios apóstolos e evangelistas, temos Josefo Flávios, Yosef  ben Mattityahu, em hebraico. Ele era um general das forças de resistência contra os Romanos, mas foi capturado, levado cativo e adotado pela Casa dos Flávius, a família dos Imperadores. Tito e Vespasiano adotaram Josefo e o transformaram numa espécie de historiador particular da família. Como parte de sua reação à guerra Romana, ele escreveu as duas mais importantes obras para se entender o primeiro século, as Antiguidades Judaicas e Guerras Judaicas. 

Após Josefo temos uma “pausa” no tempo até Judá HaNasy, um rabino da Terra de Israel que viveu na Galiléia e coletou, no final do segundo século, as deliberações e discussões dos rabinos entre o primeiro século aEC e o primeiro século EC, e também de parte do segundo século. Ele reuniu os relatos com o propósito de preservar o processo de discussão pelo qual os rabinos chegaram às conclusões dos aspectos práticos do cumprimento da lei na realidade pós Templo. Como é sabido, o Templo foi destruído em 70 EC, e desde então nunca mais foi reconstruído. Após sua destruição, aconteceu a revolta de Bar Kochba (c. 135 EC) e os judeus foram perversamente dispersos pelos romanos. Por essa razão a diáspora, Rabi Judá considerando ser importante preservar essas deliberações legais, as reuniu num volume que passou a ser conhecido como Mishná.

A palavra Mishná vem do hebraico “lishnot” que significa “estudar”, ou, numa tradução mais livre, as discussões, ou os estudos dos rabinos a respeito das leis, especialmente no Judaísmo pós Templo. Muitas deliberações legais remontam ao primeiro século aEC, e são citadas por rabinos contemporâneos a Yeshua, em Israel, já no primeiro século EC. Essa é, portanto, a Mishná. 

No começo do 4º século havia uma compilação formada pelas discussões dos rabinos sobre a Mishná; em outras palavras, os rabinos continuaram suas discussões tentando entender e chegar ao cumprimento pleno das leis apresentadas na Mishná. Isso foi feito tanto na Babilônia, como na Terra de Israel, resultando em dois Talmudes. Talmude é, por conseguinte, a discussão rabínica sobre o material que Rabi Judá HaNasy reuniu, e formado por duas seções: a Mishná, e a discussão sobre a Mishná, chamada Guemará. Guemará no dialeto aramaico significa “estudo”. Mishná também significa “estudo”, mas em hebraico, e refere-se aos primeiros estudos dos rabinos, também chamados tannaim. Assim, os rabinos que estão discutindo na Mishná são chamados tannaim, e os que estão na Guemará são chamados ammoraim. 

Os tannaim são frequentemente citados pelos rabinos na Guemará, os ammoraim, uma vez que são rabinos anteriores. Existem também passagens ou discussões que pertencem ao primeiro século, do período tannaítico, chamadas Baráita passagens externas à Mishná, que foram preservadas pela tradição judaica oralmente em sua maior parte, mas não somente assim.

Temos, então, no Talmude, muitas passagens que pertencem ao tempo de Yeshua. Elas não são de todo confiáveis, mas dispomos de métodos críticos que salientam pela linguagem, e a contento, se realmente pertencem ao tempo de Yeshua, ao primeiro século EC, ou se foram produzidos posteriormente e atribuídos a escritores e rabinos anteriores. A crítica textual é feita pela análise e comparação dos diferentes costumes, semelhanças e proximidades entre os rabinos do Talmude. Logo, não precisamos temer em considerar o Talmude um documento válido para a compreensão do contexto em que se insere o Novo Testamento. 

Desse modo, encontramos passagens e discussões relevantes que descrevem realidades contemporâneas ao apóstolo Paulo e às palavras de Yeshua HaMashiach. Essa é a razão pela qual precisaremos examinar todo esse material ao tentar compreender o Novo Testamento em seu contexto histórico. O elemento pertencente ao mesmo contexto, que lança luz sobre que acontecia no mundo do Novo Testamento e que está ao nosso dispor, como acabamos de ver, é a literatura judaica daquele período. Daremos um pequeno exemplo antes do final dessa primeira lição introdutória.

Tomemos o caso do apóstolo Paulo. Foi-nos dito no Livro de Atos que o apóstolo Paulo participou da execução do diácono Stephanus, Estavão, segurando as capas das pessoas que o condenaram e que, em seguida, o levaram para fora da cidade e o apedrejaram. A impressão que é deixada nos leitores é que Paulo seria uma espécie de mordomo ou criado. As pessoas deixavam suas capas nas mãos dele, ou aos seus pés, e logo depois seguiam para apedrejar Estevão. Entretanto, mais tarde lemos que Paulo chamou a si mesmo de “o chefe dos pecadores”. Ali ele se refere ao apedrejamento de Estevão como um evento muito traumático, e está atribuindo a si uma profunda culpa que nunca foi completamente minorada na consciência de Paulo. 

Anos mais tarde ele continua mencionando o evento. Entretanto, ser apenas um rapaz que guarda chapéus e capas não deveria fazer com que alguém se sentisse tão culpado. A fim de entender o que isso significa, precisamos procurar no Talmude, que nos diz como uma pessoa era levada para fora da cidade para ser apedrejada, o procedimento que isso envolvia e o verdadeira papel que esse guarda-capas desempenhava durante o prosseguimento da execução.

O Talmude Babilônico, no tratado Sanhedrin, p. 42 a, b e também p. 43 a, b descreve o processo de execução e nos conta que quando tiravam alguém da corte para ser apedrejada fora dos muros em Jerusalém, um homem era enviado a cavalo, ou posicionado em algum lugar alto, no meio do caminho entre o tribunal e o local da execução que era usualmente um lugar baixo, como o fundo de um vale, presumivelmente de onde a pessoa pudesse ser arremessada de um penhasco ou barranco. A esse homem a cavalo, ou posicionado de forma visível e destacada, era dado, o Talmude diz, um sudar do grego sudarus, a mesma raiz das palavras suéter e sudário. 

Ele recebia esse sudar, uma espécie de lenço ou xale, e permanecia sobre no cavalo e posicionado a meio caminho, entre o local da execução e o tribunal; esse homem era, geralmente, o promotor do caso, ou seja, o responsável pela acusação. A razão pela qual se posicionava dessa maneira se deve ao simples fato de que, uma vez que naquela época não existirem telefones celulares, era esta a forma mais rápida de comunicar o surgimento de alguma nova evidência ou testemunha, caso fosse apresentada ao tribunal depois que a execução começasse, ou se alguém apresentasse nova alegação para defender o acusado. 

O Talmude descreve em detalhes como esse promotor poderia, permanecendo lá, num lugar alto ou sobre o cavalo, sacudir o lenço o sudar, e suspender a execução instantaneamente, mesmo depois de iniciada. Esse era o trabalho de Paulo, e por isso ele sentia tanta culpa, uma vez que de fato era o responsável jurídico pela execução. Ele era o promotor do caso, e sabia, em seu coração, que Estevão estava sendo executado não por um crime contra o Templo, não por um crime contra o povo judeu, mas porque cria que Yeshua de Nazaré levantou-se da morte, que era o Messias de quem os profetas falaram, a única esperança de salvação para o povo judeu e para todo o mundo.

Aquela culpa era porque Paulo poderia parar a execução, porque Paulo sabia que a acusação era falsa e foi trazida por falsas testemunhas. A culpa por não ter parado a execução de Estevão fazia com que se sentisse o maior dentre todos os pecadores. Sem conhecer esses pequenos detalhes que nos são revelados no Talmude, nós seríamos deixados no escuro quanto às reais razões pelas quais Paulo sentia-se tão culpado. Existem muitos outros detalhes que poderemos usar para clarificar os textos, e tentar entender o contexto e ambiente do Evangelho, as Boas Novas que estão registradas para nós no livro que chamamos Novo Testamento.

Por: Rabino Joe Shulam

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