O Novo Testamento um livro Cristão, ou um livro judaico?
Uma concepção errônea tanto no mundo judaico como no
cristão nos diz que o Novo Testamento (B'rit HaDashá) pertence à Igreja e não ao
povo judeu, que Jesus (e não Yeshua) fundou uma nova religião, tornando obsoleto
o Judaísmo como a religião da Verdade e do único e verdadeiro D’us do povo
judeu, o povo escolhido. Qualquer concepção que pregue um novo Israel ou sobre
um Israel espiritual reflete essa idéia que é corrente e prevalecente no
mundo cristão, que a Igreja tomou o lugar de Israel e dos judeus, e que, por
conseguinte, se os judeus quiserem ser salvos, precisam se tornar cristãos, o
que implica em deixar o judaísmo para trás.
Quando examinamos a Bíblia e documentos pós bíblicos do Judaísmo, vemos que o Novo Testamento, seus ensinamentos, suas personagens e sua mensagem estão profundamente enraizados no mundo do primeiro século, na Terra de Israel e na herança judaica; tanto na herança bíblica do Antigo Testamento, como, naturalmente, na herança rabínica contemporânea de Yeshua HaMashiach. Tendo isso em vistas, essa série de palestras pretende apresentar o conhecimento e a experiência que o judaísmo rabínico possui em relação ao tema do Messias, e, mais especificamente, tratar da questão de como as passagens literais do Talmud e da Mishná afetam nosso entendimento sobre o mundo de Cristo e do próprio Novo Testamento.
Existem algumas definições que precisamos
especificar e clarificar antes de iniciarmos, de fato, nosso assunto. A
primeira delas diz respeito ao que é o Novo Testamento: é um documento da
igreja ou é um documento histórico do povo judeu? Mas antes de responder a essa
pergunta, vamos analisar o termo “Novo Testamento”. Está fixada no Cristianismo
a percepção de que há um Novo e um Antigo Testamento.
O termo Novo Testamento, obviamente, não é advindo
do livro que nós hoje assim chamamos. O termo aparece pela primeira vez na boca
do profeta Jeremias. No capítulo 31, verso 31 do Livro de Jeremias, o profeta
diz, em nome do Senhor, que D’us fará um novo testamento, um novo pacto, um
novo contrato com o povo da Judéia e com o povo de Israel. O termo nesse contexto
não implica nem se refere a um livro. Refere-se a uma aliança, como a aliança
feita com Israel no Sinai, ou como a aliança feita com Abraão no Monte Moriá.
Chamar esses livros “Antigo Testamento” e “Novo
Testamento” implicam numa designação incorreta. Esses livros são, na verdade,
coleções que contêm o material escrito durante um período de milhares de anos
por, diriam alguns, mais de quarenta autores diferentes, e esse material
compilado forma a Bíblia. Considerando apenas o vasto período de tempo e os
variados ambientes culturais nos quais a Bíblia foi escrita, temos uma gama de
conformações históricas que vai da peregrinação no deserto com Moisés ao
governo do Reino de Israel pela Casa de David; do reino dividido em seguida,
sob forte influência e assédio da Assíria e, mais tarde, da Babilônia, ao
retorno do exílio sob a liderança de Esdras e Neemias.
As centenas de anos
pelos quais se estendem esses períodos e as diferentes linguagens deixaram suas
marcas sobre o povo de Israel, e toda essa influência se faz sentir fortemente
nos textos bíblicos. Da mesma maneira, o Novo Testamento foi escrito durante um
período que cobre uma centena de anos, de Jesus ao final do primeiro século.
Também possui muitos escritores, alguns israelitas, outros imigrantes em
Israel, visitantes, ou estudantes estrangeiros, como o apóstolo Paulo, que era
da cidade de Tarshish, e foi para Jerusalém estudar na escola de Gamaliel.
Entre eles há, inclusive, um gentio prosélito, Lucas, um médico grego. Em
outras palavras, temos aqui uma coleção de livros inspirados pelo Espírito
Santo, escritos ao longo de milhares de anos, e seria uma grande simplificação
referir-se a essa compilação como Antigo e Novo Testamento. Sim!
O livro que chamamos em português de Antigo
Testamento é o mesmo TaNa'CH hebraico, formado pela Torah, Neviim e Ketuvim,
suas três grandes divisões que conhecemos, respectivamente, pelos nomes
Pentateuco, Profetas e Escritos. Nele há vários estilos literários diferentes,
não se tratando somente de um contrato legal ou de um testamento. Encontramos
nele poesia, como o livro de Cânticos, que reúne belos poemas de amor, ou o
Canto de Débora, memorial de guerra pela vitória de Débora e Baraque contra os
Caananitas. Também há os Salmos de David, que são hinos profundamente
devocionais e emocionantes em louvor a D'us ou em petição por Seu socorro.
Inclui documentos históricos como porções dos livros de Samuel, 1º e 2º Reis e
1º e 2º Crônicas, e, igualmente, profecias, como os registros dos profetas
clássicos Isaías, Jeremias, Ezequiel, Miquéias, Amós e Habacuque. Este livro é
uma abrangente obra literária que possui desde documentação legal até
narrativas contadas ao redor de fogueiras, de poesia a documentos históricos.
Ninguém pode simplesmente amontoar a coisa toda e então
dizer: bem, isso é a Lei tão somente. No Novo Testamento também encontramos uma
grande variedade de estilos literários, inclusive material jurídico, visto que
há leis no Novo Testamento. Paulo muitas vezes fez (e também os apóstolos em
Atos 15), sem dúvida, exigências legais; leis que estão permanentemente sobre a
Igreja, sobre todos os seguidores de Yeshua HaMashiach, sejam eles judeus ou
gentios, havendo exigências específicas para cada um estabelecidas pelos
apóstolos, pelo poder do Espírito Santo. Então, ninguém pode dizer, como o
Cristianismo tradicional tem dito, que o Velho Testamento é Lei, e o Novo
Testamento é Graça. Não! Há graça na Lei, e há lei na Graça que recebemos de
Jesus Cristo. Amontoar essas coisas e dizer “Velho Testamento” e “Novo Testamento”
é um erro, uma grave incompreensão. A terminologia bíblica não é essa. Aqueles
termos originam-se na tradição cristã e foram atribuída aos livros que chamamos
de Bíblia.
Sendo assim, quando nos referirmos ao Novo
Testamento, a pergunta que precisa ser feita é: este é um livro do
Cristianismo, ou é um livro judaico? Quando alguém examina o Cristianismo,
mesmo no segundo século ou no século XX, imediatamente percebe que os problemas
com os quais o Novo Testamento trata são problemas não-cristãos; não trata de
problemas eclesiásticos, não trata de problemas como a Imaculada Conceição
(nascimento virginal), ou do Papa, ou de arcebispos,cardeais, nenhuma dessas
coisas que são todas próprias do Cristianismo. Nem os dias santos, nem a
política, nem a doutrina básica cristã é assunto discutido no Novo Testamento.
Todas as questões mencionadas nele estão circunscritas ao mundo judaico do
primeiro século.
Por exemplo, um dos principais problemas que Paulo examina
numa série de cartas, foi o que fazer com os gentios: se deveriam manter a lei
de Moisés ou não, se deveriam ser circuncidados ou não. Esse não é um problema
da Igreja gentílica, mas judeus fazem essas perguntas e judeus deram respostas
para essas questões por inspiração de D’us e do Espírito Santo. A estrutura que
sustenta o Novo Testamento é a estrutura do Judaísmo, a igreja primitiva era
uma igreja judia. De fato, D’us precisou convencer a Pedro, por meio de uma
visão sobrenatural, que ele teria que pregar aos gentios, naquela ocasião,
Cornélio e sua família em Cesaréia. D’us não havia tornado claro para os
apóstolos, antes daquela visão, que os gentios também deveriam ser alcançados
pelo Evangelho. Isso teve que esperar, e foi revelado apenas ao final do
ministério de Yeshua, depois de sua ressurreição e antes de sua ascensão,
quando enviou os apóstolos a todas as nações. Em outras palavras, por três anos
o Messias ensinou aos apóstolos, ao povo de Israel, debateu com os fariseus e
com os saduceus, e, durante esses três anos, não temos registro que tenha dito:
“Escutem, o profeta de Israel, Isaías, disse: minha
casa será chamada casa de oração para todas as nações” Ao invés
disso, temos um relato muito diferente sobre uma mulher siro-fenícia que veio
até Yeshua para ser curada Ele disse a ela: “ninguém
dá a comida dos filhos para os cãezinhos”. Somente
após ela ter insistido e comovido Yeshua com sua humildade e avidez por ser
curada pelo nome do D’us de Israel, ele curou sua filha. Não há indícios que em
seu ministério os gentios teriam direito a alguma parte no domínio da salvação.
E o domínio da salvação para Yeshua e seus apóstolos está no mundo judaico, no
mundo da Torá, no universo da Terra de Israel no primeiro século, do qual
Yeshua nunca se separou nem se ausentou. Ele nunca foi à escola em Roma, muito
menos se graduou em Harvard. Retomemos nossa questão:
O Novo Testamento é um
livro judeu, sim ou não?
Se for um livro judeu, então para entendê-lo, nós
precisamos recolocá-lo em seu lugar de origem, de volta ao seu ambiente
histórico, lingüístico, cultural e religioso originais.
Creio que essa é a
única forma pela qual podemos entender o Novo Testamento e seu real significado
para nós hoje. ... Mesmo se o tornarmos de volta ao contexto do primeiro
século, nesse contexto, que é judaico, alguém poderia objetar que aí também
encontraríamos relações e a presença de elementos do judaísmo helenístico; mas,
ainda assim, não é o Helenismo propriamente dito, mas o judaísmo helenístico,
que era um dos constrangimentos culturais nos quais a Terra de Israel estava
mergulhada naquele momento. Ainda assim, continua sendo um livro judeu, com uma
mensagem judaica
Ele começa com as seguintes palavras: “Esse é o livro das gerações de Yeshua, o Messias, o filho de
David, o filho de Abraão”. Esse
versículo por si só enquadra todo o contexto do Evangelho dentro do Judaísmo.
Em primeiro lugar, o escritor diz que este é o livro das gerações. Se alguém
checar a terminologia, notará algo muito interessante nessa passagem. Existe
somente um outro lugar na Bíblia em que essa frase é usada, em Gênesis capítulo
5, versículo 1: “Esse é o livro das gerações de Adão”. O escritor de Mateus,
por inspiração, principiou o Evangelho com essas palavras a fim de relembrar ao
leitor que D’us criou o homem. Ele o criou do pó da terra, soprou dentro dele o
fôlego da vida, e D’us, que criou o homem, não enfrenta problema algum para
fecundar uma mulher de maneira sobrenatural, fazendo vir Seu Filho para o mundo
em carne; e, segundo, assevera que Ele cumpriu sua promessa de que o Messias
procederia do Rei David e de Abraão.
Nota do Tradutor: Na verdade, na descrição da
expulsão dos vendilhões do Templo, tanto Mateus (21:13) quanto Lucas (19:46) reproduzem
a fala de Yeshua citando, de fato, o profeta Isaías (Is 57: 6), omitindo,
porém, a parte final do versículo (...para todas as nações), que apenas aparece
em Marcos (11: 17). João (2: 16) não inclui os versos de Isaías seu relato. Em
todo caso, é preciso esclarecer que aqui o Rabino Shulam refere-se à omissão,
no mínimo, da extensão das Boas Novas aos gentios durante o ministério de
Yeshua. Mesmo na forma encontrada em Marcos, (11: 17). João (2: 16) não inclui
os versos de Isaías em seu relato.
Em todo caso, é preciso esclarecer que aqui
o Rabino Shulam refere-se à omissão, no mínimo, da extensão das Boas Novas aos
gentios durante o ministério de Yeshua. Mesmo na forma encontrada em Marcos, a
citação de Isaías não pode ser tomada como evidência explícita da inclusão dos
gentios no ministério de Yeshua, pelo menos não antes da ordenação da missão
universal aos discípulos (Mt 28: 19; Mc 16: 15 e 16; Lc 24:47) pouco antes da
Ascensão. Ao contrário, segundo vemos nas instruções aos doze em Mateus (Mt 10:
5 e 6), o Mestre instrui seus discípulos a se “desviar dos gentios e
samaritanos” e dirigir-se às “ovelhas perdidas da Casa de Israel”. Somado a
isso, a citação não se encontra num contexto de debate sobre o papel e
participação dos gentios, mas é uma exortação cheia de zelo contra os
vendilhões e todos os que desfiguravam o ambiente e propósito do Templo. 2 Mc
7:26
O Rei David e Abraão, por sua vez, são as duas
figuras na História Israelita que receberam uma promessa da parte de D’us, uma
promessa incondicional que inclui a salvação do povo de Israel e benção para
todas as nações, e são, portanto, mencionadas no primeiro versículo do
Evangelho de Mateus para relembrar o leitor que aquilo que irá ler, a história
do Messias, de Yeshua, de Jesus, é um capítulo dentro da História de Israel.
Não é a história de Roma, não é a história do Protestantismo, não é a história
de Calvino ou Lutero, é a história do povo judeu, e Jesus é aquele mesmo
Messias esperado por nossos antepassados. E essa espera, essa expectativa pela
vinda do Messias, é, foi e sempre será a esperança de Israel. Essa não é a
esperança do mundo, porque o mundo naquele tempo e ainda hoje, em sua maior
parte, é idólatra; adoram a uma multiplicidade de deuses, não ao Uno e Único
D’us, de quem nós dizemos:
“ShmáYisrael, AdonayEloheynu, AdonayEchad” –
“Ouve, Ó Israel, o Senhor seu D’us é Um”.
Nota do Tradutor: Segundo Oskar SKARSAUNE “o
judaísmo absorveu idéias helenísticas sem perder sua identidade e sem
comprometer seus princípios essenciais. Essas novas idéias helenísticas foram
usadas, nas palavras de Avot 1.1, 'para
erigir uma proteção em torno da Torá', para glorificá-la, e não para
destruí-la. (...) Assim, uma vez reconhecidas a exclusividade do Israel de D'us
e a validade absoluta de sua Lei, os sábios podiam usar de larga liberalidade
na aplicação das idéias e dos conceitos gregos em suas reflexões sobre a Torá”
(À sombra do Templo. São Paulo: Editora Vida, 2004). Ou seja, uma vez
resguardada a prescedência da Torá como verdade revelada, qualquer idéia ou
conceito que “sobrevivesse” ao seu rigoroso crivo poderia ser, e acabou por
ser, absorvido e integrado ao pensamento judaico. O caso mais famoso e
significante, presente, inclusive, no Novo Testamento, é a identificação do
logos, a lei oculta que rege todo o universo ou razão divina, com a Torá, o
padrão eterno mediante o qual tudo foi criado. Portanto, mesmo o judaismo
helenístico está longe de ser uma espécie de judaísmo “paganizado”, antes, é
mais uma expressão daautonomia e consistência do pensamento judaico frente às
mais elevadas formas de pensamento pagão.
É importante, então – e mais importante para nós se realmente quisermos
saber a verdade e entender qual é a vontade de D’us –, entendermos que aquilo
com que estamos tratando aqui é um livro judaico. Estamos tratando com um livro
que é judeu em sua profundidade, em sua linguagem, em sua teologia e em seu
universo conceitual. Para entende-lo, temos que voltar ao primeiro século, e
tentar compreender o que os ensinamentos, as parábolas, as declarações de
Yeshua, o que as histórias e os conflitos com os fariseus e com os saduceus
realmente significam naquele contexto. Somente então podemos estar seguros que
realmente temos uma concepção bíblica de fé, graça, esperança, vida eterna e
salvação.
Vejamos, então, quais ferramentas temos que nos ajudam a compreender o
universo de Yeshua HaMashiach, o mundo judaico do primeiro século. Quais
ferramentas temos à nossa disposição e que nos possibilitam fazer tal coisa?
Primeiro e antes de tudo, temos o Antigo Testamento do qual já falamos, o
livro santo que Yeshua usou que leu na sinagoga em Nazaré, o mesmo livro que
citou várias vezes diante de seus oponentes, o livro sobre o qual o apóstolo
Paulo disse: “Toda escritura é inspirada por D’us, e é proveitosa para exortar
e corrigir, ensinar e instruir” (1Tm 3:16). É esse livro que Paulo usava para
provar, nas sinagogas em Tessalônica, Beréia e Corinto, que o Messias havia
vindo.
Quando Paulo ensinava, fazia citações do Antigo Testamento, da Torá, que
diziam que ele (o Messias) devia sofrer ser enterrado, devia ressuscitar dos
mortos e assentar-se à direta de D’us. Ele não tinha Mateus, Marcos, Lucas e
João à sua disposição, não tinha nem mesmo a epístola aos Gálatas, uma vez que
ele não a havia escrito ainda. Tampouco possuía o livro de Romanos quando
estava andando por Listra e Pérgamo, Icônio, Éfeso e Colossos, ensinando a
judeus e gentios que Yeshua é o Messias. O que possuía eram os livros de
Moisés, e, talvez, alguns dos livros dos profetas à sua disposição isso era
tudo o que tinha. Então, a primeira fonte para compreender o Novo Testamento, naturalmente,
é o chamado Velho Testamento, mas existem outras fontes. No próprio Novo
Testamento, nós temos citações de muitos dos mais populares livros no tempo de
Yeshua HaMashiach.
Temos citações de Enoch, do livro de Eclesiástico, ou ben
Sira em hebraico. Nós temos citações de material rabínico, e temos uma série de
fontes que são citadas e claramente procedem do ambiente judaico daquele
período, e foram usadas para apresentar Yeshua como Messias. Além dessas fontes
do período Inter testamental, que estão parcialmente citadas no Novo Testamento
pelos próprios apóstolos e evangelistas, temos Josefo Flávios, Yosef
ben Mattityahu, em hebraico. Ele era um general das forças de resistência contra
os Romanos, mas foi capturado, levado cativo e adotado pela Casa dos Flávius, a
família dos Imperadores. Tito e Vespasiano adotaram Josefo e o transformaram
numa espécie de historiador particular da família. Como parte de sua reação à
guerra Romana, ele escreveu as duas mais importantes obras para se entender o
primeiro século, as Antiguidades Judaicas e Guerras Judaicas.
Após Josefo temos
uma “pausa” no tempo até Judá HaNasy, um rabino da Terra de Israel que viveu na
Galiléia e coletou, no final do segundo século, as deliberações e discussões
dos rabinos entre o primeiro século aEC e o primeiro século EC, e também de
parte do segundo século. Ele reuniu os relatos com o propósito de preservar o
processo de discussão pelo qual os rabinos chegaram às conclusões dos aspectos
práticos do cumprimento da lei na realidade pós Templo. Como é sabido, o Templo
foi destruído em 70 EC, e desde então nunca mais foi reconstruído. Após sua
destruição, aconteceu a revolta de Bar Kochba (c. 135 EC) e os judeus foram
perversamente dispersos pelos romanos. Por essa razão a diáspora, Rabi Judá
considerando ser importante preservar essas deliberações legais, as reuniu num
volume que passou a ser conhecido como Mishná.
A palavra Mishná vem do hebraico “lishnot” que significa “estudar”,
ou, numa tradução mais livre, as discussões, ou os estudos dos rabinos a
respeito das leis, especialmente no Judaísmo pós Templo. Muitas deliberações
legais remontam ao primeiro século aEC, e são citadas por rabinos
contemporâneos a Yeshua, em Israel, já no primeiro século EC. Essa é, portanto,
a Mishná.
No começo do 4º século havia uma compilação formada pelas discussões
dos rabinos sobre a Mishná; em outras palavras, os rabinos continuaram suas
discussões tentando entender e chegar ao cumprimento pleno das leis
apresentadas na Mishná. Isso foi feito tanto na Babilônia, como na Terra de
Israel, resultando em dois Talmudes. Talmude é, por conseguinte, a discussão
rabínica sobre o material que Rabi Judá HaNasy reuniu, e formado por duas
seções: a Mishná, e a discussão sobre a Mishná, chamada Guemará. Guemará no
dialeto aramaico significa “estudo”. Mishná também significa “estudo”,
mas em hebraico, e refere-se aos primeiros estudos dos rabinos, também chamados
tannaim. Assim, os rabinos que estão discutindo na Mishná são chamados tannaim,
e os que estão na Guemará são chamados ammoraim.
Os tannaim são frequentemente
citados pelos rabinos na Guemará, os ammoraim, uma vez que são rabinos
anteriores. Existem também passagens ou discussões que pertencem ao primeiro
século, do período tannaítico, chamadas Baráita passagens externas à Mishná,
que foram preservadas pela tradição judaica oralmente em sua maior parte, mas
não somente assim.
Temos, então, no Talmude, muitas passagens que pertencem ao tempo de
Yeshua. Elas não são de todo confiáveis, mas dispomos de métodos críticos que
salientam pela linguagem, e a contento, se realmente pertencem ao tempo de
Yeshua, ao primeiro século EC, ou se foram produzidos posteriormente e
atribuídos a escritores e rabinos anteriores. A crítica textual é feita pela
análise e comparação dos diferentes costumes, semelhanças e proximidades entre
os rabinos do Talmude. Logo, não precisamos temer em considerar o Talmude um
documento válido para a compreensão do contexto em que se insere o Novo
Testamento.
Desse modo, encontramos passagens e discussões relevantes que
descrevem realidades contemporâneas ao apóstolo Paulo e às palavras de Yeshua HaMashiach.
Essa é a razão pela qual precisaremos examinar todo esse material ao tentar
compreender o Novo Testamento em seu contexto histórico. O elemento pertencente
ao mesmo contexto, que lança luz sobre que acontecia no mundo do Novo
Testamento e que está ao nosso dispor, como acabamos de ver, é a literatura
judaica daquele período. Daremos um pequeno exemplo antes do final dessa
primeira lição introdutória.
Tomemos o caso do apóstolo Paulo. Foi-nos dito no Livro de Atos que o
apóstolo Paulo participou da execução do diácono Stephanus, Estavão, segurando
as capas das pessoas que o condenaram e que, em seguida, o levaram para fora da
cidade e o apedrejaram. A impressão que é deixada nos leitores é que Paulo
seria uma espécie de mordomo ou criado. As pessoas deixavam suas capas nas mãos
dele, ou aos seus pés, e logo depois seguiam para apedrejar Estevão.
Entretanto, mais tarde lemos que Paulo chamou a si mesmo de “o chefe dos
pecadores”. Ali ele se refere ao apedrejamento de Estevão como um evento muito
traumático, e está atribuindo a si uma profunda culpa que nunca foi
completamente minorada na consciência de Paulo.
Anos mais tarde ele continua
mencionando o evento. Entretanto, ser apenas um rapaz que guarda chapéus e
capas não deveria fazer com que alguém se sentisse tão culpado. A fim de
entender o que isso significa, precisamos procurar no Talmude, que nos diz como
uma pessoa era levada para fora da cidade para ser apedrejada, o procedimento
que isso envolvia e o verdadeira papel que esse guarda-capas desempenhava
durante o prosseguimento da execução.
O Talmude Babilônico, no tratado Sanhedrin, p. 42 a, b e também p. 43 a,
b descreve o processo de execução e nos conta que quando tiravam alguém da
corte para ser apedrejada fora dos muros em Jerusalém, um homem era enviado a
cavalo, ou posicionado em algum lugar alto, no meio do caminho entre o tribunal
e o local da execução que era usualmente um lugar baixo, como o fundo de um
vale, presumivelmente de onde a pessoa pudesse ser arremessada de um penhasco
ou barranco. A esse homem a cavalo, ou posicionado de forma visível e
destacada, era dado, o Talmude diz, um sudar do grego sudarus, a mesma raiz
das palavras suéter e sudário.
Ele recebia esse sudar, uma espécie de lenço ou
xale, e permanecia sobre no cavalo e posicionado a meio caminho, entre o local
da execução e o tribunal; esse homem era, geralmente, o promotor do caso, ou
seja, o responsável pela acusação. A razão pela qual se posicionava dessa
maneira se deve ao simples fato de que, uma vez que naquela época não existirem
telefones celulares, era esta a forma mais rápida de comunicar o surgimento de
alguma nova evidência ou testemunha, caso fosse apresentada ao tribunal depois
que a execução começasse, ou se alguém apresentasse nova alegação para defender
o acusado.
O Talmude descreve em detalhes como esse promotor poderia,
permanecendo lá, num lugar alto ou sobre o cavalo, sacudir o lenço o sudar, e
suspender a execução instantaneamente, mesmo depois de iniciada. Esse era o
trabalho de Paulo, e por isso ele sentia tanta culpa, uma vez que de fato era o
responsável jurídico pela execução. Ele era o promotor do caso, e sabia, em seu
coração, que Estevão estava sendo executado não por um crime contra o Templo,
não por um crime contra o povo judeu, mas porque cria que Yeshua de Nazaré
levantou-se da morte, que era o Messias de quem os profetas falaram, a única
esperança de salvação para o povo judeu e para todo o mundo.
Aquela culpa era porque Paulo poderia parar a
execução, porque Paulo sabia que a acusação era falsa e foi trazida por falsas
testemunhas. A culpa por não ter parado a execução de Estevão fazia com que se
sentisse o maior dentre todos os pecadores. Sem conhecer esses pequenos
detalhes que nos são revelados no Talmude, nós seríamos deixados no escuro
quanto às reais razões pelas quais Paulo sentia-se tão culpado. Existem muitos
outros detalhes que poderemos usar para clarificar os textos, e tentar entender
o contexto e ambiente do Evangelho, as Boas Novas que estão registradas para
nós no livro que chamamos Novo Testamento.
Por: Rabino Joe Shulam
Comentários
Postar um comentário